Minha infância foi assim, preto e branco era tudo a mesma porcaria. Você dava conta de sua condição, na marra, como se dizia. Alemão, alemoa, negro, negra.
— Alemoa vem cá! Lembro de saber que era comigo, nesse tempo nem meu nome direito eu sabia. Na família toda, só eu era alemoa. Toda a família tinha uma cor boa. Pegavam um sol e ficavam douradinhos. Eu o que parecia? Vermelha, um pimentão.
Assim seguia a vida, parecia que eu não existia, afinal criatura estranha, transparente. Todos os demais, não se sabia o que pensavam, o que sentiam, mas uma alemoa é uma alemoa, vermelha a cada sensação, ou quando raramente recebia atenção. Motivo de piadas e provocações. Não há nada a fazer, vamos fazer ela rir, para ficar vermelha?
No seio familiar, então, não havia explicação: — Rosa, como foi que tu conseguiu, bonita desse jeito, fazer uma filha tão feia, tu tens uma cor boa, essa guria, branca desse jeito?
— Que fazer? Dizia minha mãe. Ela resolveu nascer ao meio-dia.
Os homens adultos, já não, por algum motivo que eu não entendia, gostavam de alemoas. Nunca entendi direito o termo, alemão, usado com um certo desprezo, afinal a família se orgulhava de suas origens espanholas, um pouco de índio, mas índio da melhor das raças. Sepé Tiarajú era um ídolo lá em casa. Alemão e alemoa eram todos os que tinham cabelos louros e pele branca.
Os homens olhavam para mim e diziam, essa guria tem um sorriso que é uma graça, esses olhos tão claros parecem puro mel. É o que me lembro de aprovação na infância.
Muda pra lá, muda pra cá. Aos dezessete anos, eu conheci o Zé, o vizinho de nossa nova morada. O Zé tinha a nossa idade, o pátio dele era enorme, um sítio. Meus irmãos costumavam andar a cavalo no sítio dele. Eu estranha no ninho, várias vezes, com ele por perto, me sentia acompanhada. Também era tratado como eu, meio um aborto da natureza. Parecia sofrer menos com o trato que recebia dos demais.
Certa vez, sentados na calçada, entre um e outro alemoa pra cá e pra lá, e o insistente vermelhão, eu encabulada, ele falou: — Você liga para o que diz essa gente, eles não olham o que são. Falou sacudindo a cabeça, em um gesto de pouca consideração. Dei-me conta, que a ele também, como a mim, haviam rotulado, como um não pertencente ao tom ideal de cor. Várias vezes o Zé era chamado de negão, e eu pensava que ele era meio surdo, mas não. Ele não respondia. Não olhava em direção ao chamado, tão pouco levava em conta essas pessoas e sua pretensão.
Até hoje, eu posso dizer que raramente encontrei alguém tão bonito como o Zé naquele instante. O sempre tão quieto e sereno Zé, saiu de seu casulo e revelou para mim uma verdade das mais importantes de toda a minha vida.
Aquele pessoal, em sua maneira de ser, poderia achar o que quisesse de brancos e negros. E, nós poderíamos dar a eles a importância que decidíssemos que deveriam ter.
*A imagem é uma cópia do site: ShareAmérica – (Departamento de Estado/Doug Thompson)
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