Inquilinos

L. F. Veríssimo – 25/09/2005

Os argumentos conservacionistas teriam mais força se os humanos se reconhecessem como inquilinos do mundo, obrigados a prestar contas de cada arranhão no fim do contrato.
InquilinosFelizmente, você e eu não temos qualquer responsabilidade no funcionamento do mundo. Nenhum de nós precisa acordar cedo para acender as caldeiras, checar se a Terra está girando em torno do seu próprio eixo na velocidade adequada e se as estações se sucedem como devem. Como num prédio bem administrado, os serviços básicos do planeta são providenciados sem que se enxergue o síndico e, no caso, sem taxa de administração. Imagine se coubesse à humanidade, com sua conhecida tendência ao desleixo e à distração, manter a Terra na sua órbita e nos seus horários, ou se – como adorariam os ultraliberais – sua gerência fosse entregue a uma empresa privada, com o poder de suprimir correntes marítimas, encurtar dias ou noites e até mudar de galáxia conforme as conveniências do mercado, sujeita a erros de decisão, fraudes e, claro, falência.
É verdade que, mesmo sob a atual administração impessoal, o mundo tem defeitos, como a distribuição injusta de recursos e benefícios, que só podem ser atribuídos à incompetência, mas a responsabilidade não é nossa. A infra-estrutura já estava pronta quando nós chegamos. Apesar de tentativas elogiáveis, como a do deputado que queria emendar a lei da gravidade para atenuar os gastos da aviação com combustível, não há como… alterar as regras do seu funcionamento. Cabe a nós, isto sim, cuidar da manutenção da Terra. Todos os argumentos conservacionistas teriam mais força se conseguissem nos convencer de que somos inquilinos do mundo, obrigados a prestar contas de cada arranhão no fim do contrato. A escatologia cristã deveria substituir o Salvador que voltará para nos julgar por um Proprietário que virá retomar seu imóvel. O Juízo Final seria um minucioso inventário em que todos os estragos que fizemos na Terra seriam contabilizados – e cobrados.
Cadê a floresta que estava aqui? Valia uma fortuna.
– Este rio não está como eu o deixei…
– Estão faltando 117 espécies de animais…
A humanidade poderia tentar negociar e apontar as benfeitorias – monumentos, praças, jardins, áreas férteis onde outrora havia desertos – para compensar a devastação. O Proprietário não se impressionaria.
– Para que eu quero o Taj Mahal? Sete Quedas era muito mais bonito.
– E a catedral de Chartres? Fomos nós que fizemos. Aumentou o valor do terreno…
– Fiquem com todas as sua catedrais, represas, cidades e shoppings, quero o mundo de volta como eu o entreguei!
Não precisamos de uma mentalidade ecológica. Precisamos de uma mentalidade de locadores com medo de ter que pagar indenização.

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